A pessoa jurídica que possui ativos mensurados pelo valor justo deve escriturá-los conforme a possível variação desse valor (positiva ou negativa).
Renata Reis Ribeiro Amarante Bardella
Dentre as novidades que surgiram com a adoção e adaptação dos conceitos advindos do IFRS (International Financial Reporting Standings) à contabilidade brasileira, pode-se destacar a noção do “valor justo” para fins de mensuração de determinados ativos, que se aproxima do conceito de valor de mercado.
A pessoa jurídica que possui ativos mensurados pelo valor justo deve escriturá-los conforme a possível variação desse valor (positiva ou negativa). Tomemos como premissa a ocorrência de variação positiva e como exemplo o ativo biológico, em que facilmente se percebe tal variação. Imagine-se uma floresta destinada ao corte; anualmente o crescimento das árvores é evidente e também sua valorização no mercado afim.
A discussão inicia-se com a contrapartida contábil desse acréscimo do ativo. Há quem sustente que o reconhecimento seria em conta do patrimônio líquido (ajustes de avaliação patrimonial) pautando-se para tanto na Lei nº 6.404, de 1976, (“LSA”), artigo 182, parágrafo 3º. Note-se, contudo, que a leitura combinada desse artigo com o artigo 183 subsequente revela que a conta de ajustes de avaliação patrimonial está estritamente vinculada às variações de valor justo de ativos financeiros, não sendo aplicável a quaisquer ativos.
Isso fica claro quando se analisam Pronunciamentos Técnicos do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (“CPC”), nos quais é feita referência precisa à contrapartida das variações de valor justo de outros ativos – o resultado.
Valendo-nos do exemplo do ativo biológico, o CPC 29, item 26, dispõe: “o ganho ou a perda proveniente da mudança no valor justo (…) deve ser incluído no resultado do exercício em que tiver origem”. Há previsão idêntica em relação às propriedades para investimento (CPC 28, item 35). Portanto, a contrapartida da variação positiva do valor justo de certos ativos é a receita.
Supondo que a pessoa jurídica obtenha lucro ao fim do exercício, que relevante parte desse lucro seja originária das receitas de variação de valor justo e haja caixa para distribuir dividendos calculados sobre os lucros não realizados. A legislação vigente ampararia essa distribuição de dividendos?
Inquestionável que a referência para distribuição de dividendos é o balanço patrimonial, hoje elaborado de acordo com o IFRS. Contudo, ainda vemos referências como “balanço contábil/balanço IFRS” e “balanço fiscal/balanço BRGAAP”). Não existe nenhum suporte legal a alusão a dois balanços.
Hoje não há previsão legal que vede a distribuição sobre lucros não realizados
Por certo que se está sob o Regime Tributário de Transição (“RTT”), que neutraliza impactos fiscais decorrentes do IFRS, e, em prol dessa neutralidade tributária, as receitas derivadas de variação de valor justo serão tributadas só na realização do ativo. Contudo, cogitar que a distribuição de dividendos deveria ter como referência um “balanço fiscal” implicaria vinculá-la ao lucro tributável e não ao contábil, o que também não encontra respaldo legal.
Portanto, há apenas um balanço, que segue o IFRS, devendo ele ser a única referência para a distribuição de dividendos – legitimando a distribuição de dividendos sobre o lucro não realizado.
Ainda pela viabilidade da distribuição tem-se, por analogia, o tratamento legal dispensado à distribuição de dividendo obrigatório. Da leitura dos artigos 197 e 202 da Lei das SA conclui-se que o pagamento do dividendo obrigatório poderá ser limitado ao lucro já realizado – desde que a diferença seja registrada em reserva de lucros a realizar. A legislação apresenta como opcional a distribuição de dividendo obrigatório só sobre valores efetivamente realizados.
Por outro lado, é possível arguir que a distribuição de dividendos somente não é tributada por quem os recebe, pois deriva de lucro já tributado pela pessoa jurídica que os distribui. Como no lucro não realizado a tributação é diferida para o momento da realização do ativo, a distribuição perderia sua natureza de dividendo, passando a ser uma remuneração tributável.
Ainda assim cabe ponderar que é questão temporal, pois a tributação ocorrerá pela pessoa jurídica que distribuiu os dividendos na alienação do ativo (inclusive, já haveria constituído passivo fiscal diferido quando do reconhecimento da variação do valor justo em seu resultado).
Relevante avaliar em que medida essa discussão tem natureza eminentemente tributária, ou se não é questão relacionada à responsabilidade do administrador da pessoa jurídica, ao assumir o risco de tornar vulnerável o capital social caso a receita não se realize no futuro. Fato é que, hoje, não há previsão legal que vede a distribuição de dividendos sobre lucros não realizados.
Fonte: Valor Econômico