O Direito existe para proteger o cidadão, mas quem vai proteger o cidadão do Direito? A força bruta do tempo da barbárie foi substituída pela força do Direito – pela força de uma violência coletiva imposta pelos vencedores aos vencidos. A brutalidade da Lei pode até não chocar a sociedade pela maneira ardilosa que é aplicada, mas os efeitos perversos e avassaladores destroem famílias, comunidades e empresas. Essa mesma brutalidade protege o embusteiro, o tirano e o corrupto. E tudo é feito de forma a induzir o cidadão a acreditar no enigmático Estado de Direito. O processo acontece de modo a evitar que muito sangue seja jorrado do lombo chicoteado, visto que a sujeira poderia perturbar o senso coletivo de dignidade. O objetivo é abafar o sofrimento com o manto da legitimidade para assim preservar o ideário de que não somos selvagens como os lobos nem infames como os ratos.
O cidadão comum cresce com a noção de que está protegido pela Justiça, mas lá no fundo uma perturbadora voz lhe diz que isso é privilégio dos poderosos. Mesmo assim, esse dito cidadão insiste em se enganar; insiste na convicção de que o sistema funciona para todos. Na realidade, o que acontece é que muitos procuram se agarrar a alguma crença para não afundar na desesperança. Talvez por isso as igrejas estejam lotadas de gente em busca de refúgio e de alento.
O nosso sistema jurídico é engenhosamente programado para não funcionar, para incutir na alma do cidadão o absoluto senso de descrença na sua eficácia. Um bom exemplo são os pleitos que questionam a legitimidade das confusas, impraticáveis e asfixiantes normas tributárias. Tempos atrás uma grande empresa do nosso polo industrial local teve o seu direito reconhecido pela alta corte do país de não pagar PIS/COFINS sobre suas vendas internas. A reação de muitas outras empresas foi também pleitear junto a Justiça um benefício semelhante. A maioria declinou da ideia quando soube que na melhor das hipóteses seria preciso esperar dez anos para obter uma decisão favorável. Esse exemplo ilustra muito bem a tal engenhosidade aqui tratada. Ou seja, o cidadão sabe que o monstruoso volume de tribunais, varas, comarcas, juízes, advogados etc., não é capaz de trazer as decisões judiciais para o curto ou médio prazo. Quantas e quantas pessoas morrem aguardando uma decisão da Justiça? E que se faz para corrigir isso? Muito discurso e nada de resultado prático.
O ensaísta francês Montaigne disse que o próprio Direito tem Ficções Legítimas sobre as quais ele funda a verdade da sua justiça. É o que acontece no sistema de substituição tributária do ICMS: presunção e ficção são transformadas em fatos, que geram obrigação, que geram punição. É a mesma coisa que uma pessoa ser presa e condenada por um crime que não aconteceu. A imaginação delirante do nosso legislador criou uma lógica metafísica que desafia a mais ousada das correntes filosóficas. Por mais atrevido que fosse, nenhum doutrinador seria capaz de propor a ideia de o servo entregar parte da colheita ao senhor da terra antes da semeadura. Seria o mesmo que convencer alguém sobre o absurdo de que a chuva sobe em vez de cair. Pois é! Por incrível que pareça o nosso legislador fez isso. O argumento utilizado para justificar tamanha perversão foi o tal princípio da Praticabilidade, que não é senão uma das tais Ficções Legítimas transformada em fato.
Como a própria sigla diz, o ICMS incide sobre a circulação de mercadorias, que gera débito, que deduzido do crédito das aquisições resulta no valor a recolher ao erário. Na modalidade de substituição tributária o ICMS é cobrado sobre a não circulação de mercadorias. O imposto é cobrado sem que o fato gerador tenha acontecido. A própria essência primeira, justificadora da criação do ICMS foi destruída e no seu lugar foi colocada uma coisa absolutamente transcendental. E o valor cobrado antecipadamente é alto: mais de um quinto do valor da mercadoria deve ser pago de imediato. Isso até lembra o tão absurdo quinto dos infernos que hoje é apenas um dos mais de cinquenta tributos cobrados no Brasil.
De início, foram criadas as figuras do substituto, que era o fornecedor da mercadoria; e o substituído, que era o comerciante adquirente. O fornecedor fazia papel de Fisco ao cobrar do adquirente o imposto sobre uma presumida venda que poderia até nem acontecer. Não satisfeito, o legislador perverteu o próprio pervertido regime de substituição tributária. Isso ocorreu quando o legislador criou a substituição tributária interna, fato que eliminou a figura do substituto tributário. Nesse regime, o imposto é cobrado pela própria SEFAZ, que assumiu o papel de substituto tributário, ficando claro que a operação fiscal é na realidade uma antecipação definitiva e não uma operação de substituição tributária.
Essa perversa e atroz modalidade de cobrança está matando as empresas. Poucos estão conseguindo sobreviver com os caninos da SEFAZ cravados na sua jugular. Uma maneira de amenizar tantos repuxos nas normas do ICMS seria conceder um tempo hábil para as empresas venderem seus produtos. Os valores notificados num determinado mês poderiam ser pagos no quinto mês subsequente. As empresas estão no limite do estrangulamento e algo urgente deve ser feito para evitar um colapso ou uma insurgência coletiva.
Fonte: joseadriano.com.br