Um novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) em casos que não envolvem questões tributárias poderá influenciar as discussões sobre a guerra fiscal entre Estados. A Corte, em mais de uma ocasião, decidiu julgar leis que haviam sido revogadas pouco antes de entrarem na pauta do tribunal. Alguns Estados adotam a estratégia de revogar leis que poderiam ser consideradas inconstitucionais para evitar um julgamento do Supremo e, em seguida, editam norma com o mesmo conteúdo.
Em razão disso, os ministros do STF têm levantado uma nova questão de ordem. Eles entendem que a medida seria uma tentativa de enganar o Supremo – “uma fraude à jurisdição”. Por isso, têm julgado essas ações, o que não faziam antes porque a norma não estaria mais em vigor.
Na prática, com o julgamento, os efeitos da legislação revogada podem ser questionados. E fica, portanto, mais fácil derrubar na Justiça uma nova lei com o mesmo teor daquela declarada inconstitucional.
Os casos julgados até o momento referem-se a benefícios não fiscais. Para tributaristas, como a estratégia é também comum em ações judiciais de Estados contra leis de outros governos que concedem benefício fiscal não autorizados pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), a fraude à jurisdição pode vir a ser aplicada em ações de guerra fiscal por terem o mesmo fundamento.
A fraude à jurisdição começou a ser levantada porque os ministros começaram a considerar que as leis em discussão já tinham surtido efeitos no passado. No julgamento mais recente, o Pleno do Supremo analisava uma Adin da Procuradoria-Geral da República contra resoluções de 2003 da Câmara Legislativa do Distrito Federal, que alteraram a remuneração de servidores da Casa. Em 2009, a Câmara revogou as resoluções e aprovou uma lei de conteúdo semelhante. O Supremo considerou que a revogação dos atos contestados e a sua substituição por outro parecido sugeriam tentativa de fraude à jurisdição do STF com o objetivo de se prejudicar o julgamento da Adin.
Nessa ação, a questão de ordem foi suscitada pelo ministro relator Gilmar Mendes, que só não foi seguido pelo ministro Marco Aurélio, e as normas questionadas foram declaradas inconstitucionais. Por nota, a procuradoria do Distrito Federal informou que entrou com embargos de declaração e aguarda um posicionamento do STF. Para o tributarista Guilherme Cezaroti, do Campos Mello Advogados, a partir desse novo posicionamento, o Supremo poderá julgar o mérito das Adins contra benefícios de ICMS concedidos sem autorização do Confaz mesmo que a norma tenha sido revogada.
Em um dos casos de guerra fiscal que já chegou ao Supremo, o Estado do Paraná entrou com uma Adin contra uma lei de São Paulo. O regulamento de ICMS do Estado de São Paulo passou a conceder redução da base de cálculo do imposto para produtos da cesta básica de alimentos e de softwares. A Adin foi incluída na pauta de julgamento do STF em dezembro de 2006. Em janeiro de 2007, o governo paulista editou o Decreto nº 51.520 revogando os referidos benefícios, razão pela qual em fevereiro de 2007 o STF entendeu que a ação estaria prejudicada e não a julgou. “Naquele mesmo mês, a Secretaria da Fazenda de São Paulo editou o Comunicado da Administração Tributária nº 4, revigorando os benefícios que haviam sido revogados”, diz o advogado Cezaroti.
O subprocurador-geral da Procuradoria-Geral do Estado paulista Eduardo José Fagundes afirma desconhecer que São Paulo adote essa estratégia. “Mas já vi outros Estados usarem”, afirma. Para o procurador, se o Estado tem a lei declarada inconstitucional e traz outra regra com idênticos benefícios, a fraude à jurisdição pode ser aplicada. Fagundes, no entanto, afirma que não ocorreu “revigoração” de norma revogada pelo Decreto nº 5.120, de 2007.
Segundo o advogado Luiz Gustavo Bichara, do escritório Bichara, Barata e Rocha Advogados, o impacto da aplicação da fraude à jurisdição para os contribuintes seria a impossibilidade de usar tais benefícios fiscais no caso de norma reeditada. Já para quem aproveitou o benefício com base na norma julgada inconstitucional, existiria o risco de ter que se pagar o imposto recolhido a menos. “As empresas poderiam alegar que usaram o benefício de boa-fé, com base em lei, e, assim, não poderiam ser penalizadas”, argumenta Bichara. Já o tributarista Júlio de Oliveira, do Machado Associados, defende que a declaração de fraude à jurisdição pode habilitar ações de improbidade administrativa contra os Estados que concedem benefício sem autorização do Confaz. “Até hoje, a situação dos Estados que editam essas normas é muito cômoda. Desprezam a Constituição e nada acontece com eles”, diz. “Porém, as empresas não têm escolha porque ou aderem ao benefício fiscal ou saem do mercado.”
Laura Ignacio – De São Paulo