Por Fábio Martins de Andrade
A comunidade jurídica está mobilizada para encontrar uma saída justa para a chamada “Guerra Fiscal” entre os estados do Brasil. Mobiliza-se para a consulta pública referente ao edital de proposta de Súmula Vinculante nº 69, com o seguinte teor: “Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz, é inconstitucional”.
Ora, embora o teor reflita a orientação jurisprudencial dominante da Suprema Corte, para efetivamente chegar a um equacionamento razoável, há uma série de ponderações que devem ser contempladas quando do debate em torno da redação final de tal proposta, sobretudo se considerarmos que o seu verbete será vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estaduais e municipais.
De início, cabe registrar que a questão da aprovação unânime no âmbito do Confaz está atualmente submetida ao Plenário do Supremo Tribunal Federal nos autos da ADPF 198, da relatoria do ministro Dias Toffoli e ajuizada pelo governador do Distrito Federal, em 2009, na qual questiona os artigos 2º, § 2º, e 4º, ambos da Lei Complementar nº 24/75, por violação ao artigo 1º da Constituição da República, na medida em que ofenderia o princípio democrático, o princípio federativo e o princípio da proporcionalidade.
Além disso, foram opostos embargos de declaração nos autos das seguintes ações diretas de inconstitucionalidade com pleito expresso de aplicar a modulação temporal dos efeitos à declaração de inconstitucionalidade na modalidade prospectiva: 3.794/PR, 4.152/SP e 2.549/DF.
Ora, cabe destacar que os acórdãos objeto dos declaratórios aqui mencionados foram objeto de julgamento na mesma assentada em 1º de junho de 2011, em conjunto com tantas outras ações que foram julgadas naquele dia, versaram sobre o tema e estão servindo como fundamento para a Proposta de Súmula Vinculante nº 69.
Tais circunstâncias, sozinhas, já recomendam uma necessária maturação especificamente acerca da necessária unanimidade para a celebração de convênios no âmbito do Confaz.
No tocante ao pleito de modulação temporal dos efeitos das decisões tomadas nas ações diretas de inconstitucionalidade anteriormente referidas, por si só, não inviabilizam o exame da PSV 69 nesse momento, embora recomende especial atenção a esse ponto.
De fato, tudo isso com o objetivo de evitar que a eventual edição da PSV 69 não venha a criar ainda mais confusão sobre o complicado tema da “Guerra Fiscal”, com a aprovação de teor que venha a ser incompatível ou contraditório com eventuais decisões que deverão ser prolatadas pela Suprema Corte, especialmente em casos hoje pendentes.
No âmbito da PSV 69, é curioso notar que consta a manifestação de variadas entidades na tentativa saudável de colaborar com o debate que ocorrerá entre os ministros quando da votação sobre o teor do verbete. Dentre elas, há diferentes manifestações legítimas em torno da possível aplicação da modulação dos efeitos da súmula vinculante em questão, isto é, congregando do mesmo lado tanto os estados (na condição de administração tributária) como também as empresas (na condição de contribuintes).
Prova cabal disso é que tal circunstância é contemplada de modo expresso tanto pela manifestação apresentada em 16 de maio de 2012 pela Procuradoria-Geral do Distrito Federal como também naquela apresentada pela Firjan em 15 de maio de 2012. Ora, é tão difícil lograr-se consenso em matéria tributária entre a Administração Pública e os contribuintes, que quando se verifica deve, no mínimo, ser considerado e sinalizar no sentido do bom senso
Isso ocorre porque as razões de segurança jurídica, aptas a fundamentar a aplicação da modulação dos efeitos, nos termos da faculdade prevista no artigo 4º da lei 11.417/06, se evidenciam, na presente hipótese, através de variados aspectos.
Inicialmente, o longo lapso de tempo eventualmente decorrido entre a concessão do benefício fiscal declarado ou considerado inconstitucional e os dias de hoje, por si só, já seria razão suficiente para profundas reflexões quanto à necessidade de ponderar os efeitos à luz das situações consolidadas ao longo dos anos.
De fato, depois de tantas ações, atos, gestos, decisões, todas tomadas no âmbito de certa região, tanto pelo estado que concedeu o benefício impugnado como também pela empresa que ali se estabeleceu, como pretender que pura e simplesmente nunca tenha havido tal benefício? Ora, nada mais justo do que considera-lo como “revogado” daqui para frente (sob um ponto de vista prático), mas respeitando o período passado.
Isso evitaria o constrangimento de colocar agora em polos antagônicos duas figuras que até bem pouco eram colaboradores. Quando a empresa se instalou na região escolhida, certamente confiou na estabilidade das relações estatais e na legislação pertinente então disponível para a realização do projeto. A partir de agora, enfrentar-se-ão como ex adversus na medida em que caberá ao estado (que antes concedeu o benefício fiscal) recuperar os valores que deixaram de ser recolhidos aos cofres estatais em razão do benefício. Por outro lado, a empresa (contribuinte que se instalou no local escolhido) terá razões de sobra para pleitear a legitimidade do benefício para o seu caso concreto.
De fato, evitaria a criação de um impasse esdrúxulo tanto para a empresa como também para o estado. A empresa vê-se de uma hora para outra com uma contingência, ao menos virtual (que ainda não se materializou), em relação aos últimos cinco anos, quando tiver operado nessas condições na localidade. O estado, por sua vez, vê-se obrigado (e sua atividade é vinculada, não havendo opção de eventualmente transigir) a cobrar da empresa com quem negociou o incentivo no passado, com a cobrança da diferença do ICMS sobre os valores dos últimos cinco anos de atividade, em razão da declaração de inconstitucionalidade nas ADIs e, agora, da súmula vinculante.
Ora, isso possivelmente fomentaria maior litigiosidade e poderia criar inaceitável instabilidade nas relações entre a Administração Tributária e os contribuintes no território dos estados envolvidos.
Além disso, pressupondo que geralmente tais benefícios fiscais são concedidos em condições onerosas para as empresas, com a exigência formal de construção e instalação de fábrica ou planta industrial, com o objetivo de fomentar novos empregos e a economia da região, é importante indagar: como ficam os investimentos realizados em razão da confiança na relação estabelecida no passado? De fato, o cômputo dos custos inerentes à atividade operacional desempenhada pela empresa na região certamente levou em conta a incidência tributária que foi então avençada, e não a sua integralidade como atualmente está sendo exigida, no tocante ao ICMS.
Ademais, impõe-se registrar que não cabe ao estado beneficiar-se de sua própria “torpeza”, vez que concedeu benefício fiscal que sabia – ou deveria saber – indevido, não lhe cabendo agora, anos depois, pleitear em execução fiscal os valores que entende devidos a título de complementação.
Por fim, mas não menos importante, cabe destacar que, no fundo, a presente questão cuida de clássica ponderação de bom senso, isto é, de que modo é possível dar a máxima efetividade e a maior concretude à Constituição da República? Entendemos que, na situação específica, a modulação tem o condão de acomodar os diferentes interesses envolvidos e, acima de tudo, fazer cumprir a Constituição, com o atendimento dos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da segurança jurídica, dentre outros.
Com efeito, têm-se alegações de efetivo cumprimento da vontade constitucional, na medida em que a concessão de benefício fiscal é mecanismo para atender a previsão expressa no sentido de que constitui objetivo fundamental da República garantir o desenvolvimento nacional e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Com o objetivo de resguardar a proteção da confiança legítima e da boa-fé dos contribuintes que efetivamente instalaram suas operações contando com o benefício posteriormente reconhecido como ilegítimo, uma sugestão de interesse unânime na hipótese da chamada “Guerra Fiscal” refere-se à possível aplicação da modulação temporal dos efeitos de tal súmula, vez que atenderia aos interesses dos estados que tiveram os benefícios fiscais que concederam declarados inconstitucionais e aos contribuintes que se viram surpreendidos com a revogação repentina e imediata que valeria a partir de agora (sem prejudicar o período pretérito dos últimos cinco anos).
Assim, a súmula teria eficácia a partir de sua publicação, tendo em vista razões de evidente segurança jurídica anteriormente expostas. Ou, para individualizar ainda mais diferentes situações já ocorridas ou em vias de ocorrer, a súmula vinculante poderia ter a sua eficácia temporal limitada ou o efeito vinculante restrito para valer apenas a partir do trânsito em julgado de decisão que tenha declarado inconstitucional o dispositivo ou diploma legislativo que concedeu o benefício.
FONTE: REVISTA CONSULTOR JURÍDICO, 23 DE MAIO DE 2012