A questão do vício formal e o entendimento divulgado pela Receita Federal do Brasil

LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO. ANULAÇÃO. ERRO NA IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO PASSIVO. VÍCIO FORMAL OU MATERIAL.
Mera irregularidade na identificação do sujeito passivo que não prejudique o exercício do contraditório não gera nulidade do ato de lançamento.
A ocorrência de defeito no instrumento do lançamento que configure erro de fato é convalidável e, por isso, anulável por vício formal.
Apenas o erro na subsunção do fato ao critério pessoal da regra-matriz de incidência que configure erro de direito é vício material.
Despacho de Aprovação Cosit nº 9.
(Processo de Consulta Interna nº 8/13 – Coordenação-Geral do Sistema de Tributação – COSIT – Data da Decisão 14/03/2013 – Data de Publicação 14/03/2013).

Destaca-se a presente Solução de Consulta Interna, editada pela Coordenação Geral do Sistema de Tributação da Receita Federal do Brasil (COSIT) vazada nos seguintes Termos:

O tema não é novo no âmbito do contencioso administrativo. Ganhou força quando da edição das antigas Instruções Normativas SRF nº 54/97 e 94/97 que disciplinavam o cancelamento de ofício dos chamados “Lançamentos Eletrônicos”, emitidos pela então Secretaria da Receita Federal em decorrência do processamento de declarações de rendimentos retidas nas chamadas Malhas Eletrônicas.

O ponto central do litígio sempre esteve situado na questão da possibilidade ou não de novo lançamento para sanar o erro do primeiro lançamento, à vista das regras de contagem do prazo decadencial previsto no Código Tributário Nacional (CTN).

As decisões administrativas de segundo grau sempre apontaram para o entendimento de que a autorização para novo lançamento contida no inciso II do art. 173 do CTN é norma autônoma de contagem de prazo decadencial, mas de aplicação restrita à hipótese lá disciplinada.

Vale dizer, há que se verificar se o dispositivo autorizativo do“relançamento”restou legalmente atendido.

Por bem situar as questões relativas ao novo lançamento providenciado pelo fisco quando o anterior tenha sido anulados por vício formal, transcrevo precisas lições do tributarista Dr. Antonio Airton Ferreira(1) :

“Cuida este trabalho de analisar o alcance do inciso II do art. 173 do Código Tributário Nacional – CTN. Sem a pretensão de esgotar o assunto, almeja-se definir o campo de aplicação dessa regra excepcional, que, em tese, autoriza a lavratura de um segundo lançamento tributário, quando configurada a nulidade por vício formal do lançamento original.”

O dispositivo em análise, está assim redigido:

“Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:

I – (…)

II – da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado.

(…)”

O primeiro passo exige a caracterização do vício formal no âmbito dessa regra especial de decadência.

2. DEFINIÇÃO DE VÍCIO FORMAL NO CONTEXTO DO ARTIGO 173, II, DO CTN

Luiz Henrique Barros de Arruda, com a experiência haurida nos vários anos do exercício das magnas funções de Auditor-Fiscal, de Coordenador-Geral do Sistema de Fiscalização e de destacado Conselheiro do Egrégio Conselho de Contribuintes, à página 82 do seu Processo Administrativo Fiscal publicado pela Editora Resenha Tributária, define assim o vício formal:

“O vício de forma existe sempre que na formação ou na declaração da vontade traduzida no ato administrativo foi preterida alguma formalidade essencial ou que o ato não reveste a forma legal.

Formalidade é, pois, todo o ato ou fato, ainda que meramente ritual, exigido por lei para segurança da formação ou da expressão da vontade de um órgão de uma pessoa coletiva (Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10a. ed., Tomo I, 1973, Lisboa.”

De Plácido e Silva, no seu Vocabulário Jurídico, vol. IV, Forense, 2a. ed., 1967, pág. 1651, detalha mais essa definição:

“As formalidades mostram-se prescrições de ordem legal para feitura do ato ou promoção de qualquer contrato, ou solenidades próprias à validade do ato ou contrato.

Quando as formalidades atendem à questão de forma material do ato, dizem-se extrínsecas.

Quando se referem ao fundo, condições ou requisitos para a sua eficácia jurídica, dizem-se intrínsecas ou viscerais, e habitantes, segundo se apresentam como requisitos necessários à validade do ato (capacidade, consentimento), ou se mostram atos preliminares e indispensáveis à validade de sua formação (autorização paterna, autorização do marido, assistência do tutor, curador etc”(grifos acrescidos).

As lições desses dois Mestres evidenciam a importância de se estabelecer com rigor a distinção entre formalidade extrínseca e intrínseca, sendo legítimo afirmar que há casos em que a omissão de forma, como, por exemplo, a falta de indicação do dispositivo legal infringido, desde que o fato esteja perfeitamente identificado, por não caracterizar um vício intrínseco , não prejudica a validade do procedimento fiscal, como reconhece pacificamente a nossa jurisprudência administrativa.

Todavia, se a ausência de formalidade for intrínseca ou visceral – a definição do fato tributário, por hipótese – ela determina a nulidade do ato administrativo de lançamento, fora do contexto do vício formal. Oportunas e insuspeitas, a esse respeito, as conclusões do Mestre Luiz Henrique Barros de Arruda, grafadas nesses peremptórios termos:

“o lançamento que, embora tenha sido efetuado com atenção aos requisitos de forma e às formalidades requeridas para a sua feitura, ainda assim, quer pela insuficiência na descrição dos fatos, quer pela contradição entre seus elementos, efetivamente não permitir ao sujeito passivo conhecer com nitidez a acusação que lhe é imputada é igualmente nulo por falta de materialização da hipótese de incidência e/ou o ilícito cometido; nessa hipótese, não pode o Fisco invocar em seu benefício o disposto no artigo 173, inciso II, do CTN, aplicável apenas às faltas formais”(destaques acrescidos).

Essa visão rigorosamente técnica e insuspeita, pois formada ao tempo em que o autor exercia a função de Auditor-Fiscal, encontra apoio na mais abalizada doutrina nacional.

Sacha Calmon Navarro Coêlho, por sua precisão habitual, merece o primeiro destaque, verbis:

“Em síntese, embora anômalo em relação à teoria geral da decadência, que não admite interrupções, pois que sua marcha é fatal e peremptória, o sistema do Código adotou uma hipótese de interrupção da caducidade. Mas há que entendê-la com temperamentos. Em rigor, já teria ocorrido um lançamento, e, pois, o direito de crédito da Fazenda já estaria formalizado. Não há mais falar em decadência. Em real verdade, está a se falar em anulação de lançamento – por isso que inaproveitável – e sua substituição por outro, hipótese, por exemplo, de lançamento feito por autoridade incompetente para fazê-lo (o SERPRO, v.g., e não o funcionário fiscal da Receita Federal”(Curso de Direito Tributário Brasileiro, editora Forense, pág. 722 – grifo acrescido).

Luciano da Silva Amaro tem posicionamento parecido, a saber:

“O Art. 173, II [CTN], cuida de situação particular; trata-se de hipótese em que tenha sido efetuado um lançamento com vício de forma, e este venha a ser anulado(ou melhor, declarado nulo, se tivermos presente que o vício de forma é causa de nulidade, e não de mera anulabilidade) por decisão (administrativa ou judicial) definitiva. Nesse caso, a autoridade administrativa tem novo prazo de cinco anos, contados da data em que torne definitiva a referida decisão, para efetuar novo lançamento de forma correta. O dispositivo comete um dislate. De um lado, ele, a um só tempo, introduz, para o arrepio da doutrina, causa de interrupção e suspensão do prazo decadencial (suspensão porque o prazo não flui na pendência do processo em que se discute a nulidade do lançamento, e interrupção porque o prazo recomeça a correr do início e não da marca já atingida no momento em que ocorreu o lançamento nulo). De outro, o dispositivo é de uma irracionalidade gritante. Quando muito, o sujeito ativo poderia ter a devolução do prazo que faltava quando foi praticado o ato nulo. Ou seja, se faltava um ano para a consumação da decadência, e é realizado um lançamento nulo, admita-se que, enquanto se discute esse lançamento, o prazo fique suspenso, mas, resolvida a pendenga formal, não faz qualquer sentido dar ao sujeito ativo um novo prazo de cinco anos, inteirinho, como prêmio por ter praticado um ato nulo”(Direito Tributário Brasileiro, Saraiva, pág. 381).

Com o devido respeito ao Mestre citado, no tocante ao prazo adicional oferecido ao Fisco, é possível gravar uma interpretação que melhor se coaduna com essa regra especial, garantindo a vigência ao questionado inciso II, do artigo 173, do CTN. Com efeito, diante de um lançamento declarado nulo por vício formal, o Fisco teria o direito de repisar o lançamento no prazo original de decadência, vale dizer, no prazo original dos 5 (cinco anos) para feitura do imprescindível lançamento.

Feito esse registro, lançando os olhos para o outro espectro doutrinário, impõe-se dar a palavra final ao Mestre Ives Gandra da Silva Martins,verbis:

“Entendemos que a solução do legislador não foi feliz, pois deu para a hipótese excessiva elasticidade a beneficiar o Erário no seu próprio erro. Premiou a imperícia, a negligência ou a omissão governamental, estendendo o prazo de decadência. A nosso ver, contudo, sem criar uma interrupção (…). Devemos compreender, porém, o artigo no espírito que norteia todo o Código Tributário, que considera créditos tributários definitivamente constituídos aqueles que se exteriorizem por um lançamento, o qual pode ser modificado, constituindo um novo crédito tributário. Ora, o que fez o legislador foi permitir um novo lançamento não formalmente viciado sobre obrigação tributária já definida no primeiro lançamento mal elaborado . Pretendeu, com um prazo suplementar, beneficiar a Fazenda a ter seu direito à constituição do crédito tributário restabelecido, eis que claramente conhecida a obrigação tributária por parte dos sujeitos ativo e passivo. Beneficiou o culpado, de forma injusta, a nosso ver, mas tendendo a preservar para a hipótese de um direito já previamente qualificado, mas inexeqüivel pelo vício formal detectado”(citação contida no Código Tributário Nacional Comentado, obra coletiva dos Magistrados Federais, sob a coordenação do Juiz Vladimir Passos de Freitas, publicada pela Revista dos Tribunais, pág. 664 – destaques acrescidos).

Como visto, há um ponto comum em todos os mestres citados: o lançamento substitutivo só tem lugar se a obrigação tributária já estiver perfeitamente definida no lançamento primitivo. Neste plano, haveria uma espécie de proteção ao crédito público já formalizado, mas contaminado por um vício de forma que o torna inexeqüivel. Bem sopesada, percebe-se que a regra especial do artigo 173, II, do CTN impede que a forma prevaleça sobre o fundo. É preciso, contudo, como sabiamente afirma o mestre Ives Gandra, que esse direito“esteja previamente qualificado. ”

3. (…)

“O artigo 142 do Código Tributário Nacional contém uma definição de lançamento, estabelecendo que “compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível, acrescentando o Parágrafo Único que a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”( Do Lançamento Teoria Geral do Ato do Procedimento e do Processo Tributário, Forense, pág. 23)

Ora, a ausência desses elementos ou de algum deles, inquestionavelmente, dá causa à nulidade do lançamento por defeito de estrutura e não apenas por um vício formal, caracterizado, como visto anteriormente, pela inobservância de uma formalidade exterior ou extrínseca necessária para a correta configuração desse ato jurídico.

(…)

4. O VÍCIO FORMAL NÃO ADMITE INVESTIGAÇÕES ADICIONAIS

Neste contexto, é lícito concluir que as investigações intentadas no sentido de determinar, aferir, precisar o fato que se pretendeu tributar anteriormente, revelam-se incompatíveis com os estreitos limites dos procedimentos reservados ao saneamento do vício formal. Com efeito, sob o pretexto de corrigir o vício formal detectado, não pode Fisco intimar o contribuinte para apresentar informações, esclarecimentos , documentos etc tendentes a apurar a matéria tributável. Se tais providências forem necessárias, significa que a obrigação tributária não estava definida e o vício apurado não seria apenas de forma, mas, sim, de estrutura ou da essência do ato praticado.

Deveras, como visto anteriormente, a adoção da regra especial de decadência prevista no artigo 173, II, do CTN, no plano do vício formal, que autoriza um segundo lançamento sobre o mesmo fato, exige que a obrigação tributária tenha sido plenamente definida no primeiro lançamento. Vale dizer, para usar as palavras já transcritas do Mestre Ives Gandra Martins, o segundo lançamento visa“preservar um direito já previamente qualificado, mas inexeqüivel pelo vício formal detectado”. Ora, se o direito já estava previamente qualificado, o segundo lançamento, suprida a formalidade antes não observada, deve basear-se nos mesmos elementos probatórios colhidos por ocasião do primeiro lançamento.”

De se concluir, portanto, calçado nas abalizadas doutrinas citadas que a Solução de Divergência da Receita Federal do Brasil, muito embora salutar, na medida em dá um direcionamento mais claro no agir dos órgãos fiscalizadores e até dos órgão julgadores de primeira grau, não se sobrepõe a essa que nos parece a melhor interpretação da regra do inciso II do art. 173 do Código Tributário Nacional.

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1] Ferreira, Antonio Airton. Normas Gerais de Direito Tributário – Lançamento Anulado por Vício Formal – Novo Lançamento – Alcance da Norma – CTN art. 173, II. Publicado em http://www.fiscosoft.com.br/main_index.php?home=home_artigos&m=_&nx_=&viewid=26608. Acesado em 20.03.2013.

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