Muitos contribuintes já sofreram prejuízos e constrangimentos diante do ensandecido comportamento de autoridades que procuram instaurar procedimentos para apuração de supostos crimes contra a ordem tributária sem adequados fundamentos.
Vem se tornando comum, por exemplo, o comparecimento de policiais civis a estabelecimentos comerciais onde, com base em suposta denúncia anônima, exigem a exibição de livros e documentos fiscais para verificações.
Tais diligências, contudo, são totalmente ilegais, pois a fiscalização de tributos é matéria de competência exclusiva dos agentes fiscais estaduais ou dos auditores da Receita Federal, em qualquer caso mediante notificação formal.
Especificamente acerca dos limites da atuação da Administração Tributária, confira-se, dentre outros, o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal (STF HC 82.788/RJ, DJU 02.06.2006):
“ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA – DEVER DE OBSERVÂNCIA, POR PARTE DE SEUS ÓRGÃOS E AGENTES, DOS LIMITES JURÍDICOS IMPOSTOS PELA CONSTITUIÇÃO E PELAS LEIS DA REPÚBLICA – (…) ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA – FISCALIZAÇÃO – PODERES – NECESSÁRIO RESPEITO AOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS DOS CONTRIBUINTES E DE TERCEIROS.
– Não são absolutos os poderes de que se acham investidos os órgãos e agentes da administração tributária, pois o Estado, em tema de tributação, inclusive em matéria de fiscalização tributária, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuinte se aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional. (…).
– Os procedimentos dos agentes da administração tributária que contrariem os postulados consagrados pela Constituição da República revelam-se inaceitáveis e não podem ser corroborados pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de inadmissível subversão dos postulados constitucionais que definem, de modo estrito, os limites – inultrapassáveis – que restringem os poderes do Estado em suas relações com os contribuintes e com terceiros”
O que a polícia deve fazer, ante a denúncia, é seu encaminhamento à autoridade fiscal e, se por esta for requisitada força policial, aí sim acompanhar os agentes do fisco.
Essas normas são muito claras no artigo 200 do CTN, que autoriza a requisição policial quando houver desacato ou embaraço à ação fiscal. O policial , civil ou militar, não é guarda-costas de servidores civis e só pode agir conforme a lei determina.
Nenhuma lei determina que pode a Polícia fiscalizar tributos. Pode agir, contudo, no caso de flagrantes específicos, como no transporte de mercadorias sem documentos. Mas, apreendidas estas e detidos os infratores, o fato deve ser imediatamente comunicado ao fisco, para as providências a seu cargo.
Ninguém coloca em dúvida a necessidade de que a sonegação deva ser combatida, como crime que é. Mas a precipitação do fisco ou de outras autoridades na apuração dos supostos fatos pode gerar atos nulos ou causar prejuízos ao poder público, com trabalhos inúteis.
Tal é o caso, por exemplo, de denúncias ofertadas pelo MP sem que as provas sejam suficientemente robustas para ampará-la.
Já vimos caso de denúncia ofertada com base apenas na presunção de ato ilícito, posto que o contribuinte, acusado de adquirir mercadorias com documentos tidos como inidôneos, não obteve êxito na esfera administrativa, onde seus recursos foram improvidos.
Nesse caso, o MP sustentou que, inscrita a dívida, estaria provado o crime e, assim agindo, não promoveu qualquer diligência adicional no curso do processo, valendo-se como prova apenas do depoimento de testemunha, o fiscal que elaborou o auto de infração.
O inquérito policial, como se sabe, é onde as provas são produzidas. Caso o MP as entenda insuficientes, requisitará as que as completem, na forma dos artigos 13 e 16 do Código de Processo Penal.
No curso da ação penal o réu terá a possibilidade de defender-se adequadamente, produzindo todas as provas que tiver a seu favor.
No exemplo citado, – contribuinte, acusado de adquirir mercadorias com documentos tidos como inidôneos – o réu poderá comprovar a idoneidade dos documentos, a efetiva realização das operações, etc.- Com isso, terá condições de afastar os fundamentos fáticos da denúncia ou trazer para os autos dúvidas suficientes da materialidade ou da autoria, de forma que a sentença resulte em sua absolvição.
Nesse mesmo exemplo, há outro aspecto relevante, que se refere à autoria. A denúncia há de vir com identificação exata e precisa do responsável pelo ato. Tal questão acabou produzindo discussões recentes, quando ganhou evidência a chamada teoria do domínio do fato pela qual deve ser punida também a pessoa que ordenou ou permitiu que o fato ocorresse.
Ora, numa empresa qualquer, especialmente nas médias e pequenas, pode acontecer de não ser do conhecimento do sócio ou diretor o fato do qual resultou a sonegação.
A lei brasileira prevê que o pagamento do tributo e seus acréscimos, antes da denúncia, extingue a punibilidade. Mas nem sempre isso é viável, especialmente se levarmos em consideração as multas absurdas que são previstas em nossa legislação.
Não se pratica Justiça Tributária condenando-se o empresário que não sabia do fato delituoso e que, se dele tomasse conhecimento a tempo, teria recolhido o valor devido para encerrar o assunto ou, ainda, aquele que não tenha condições de fazer o pagamento por causa de multas exorbitantes e confiscatórias.
Com isso, a aplicação da chamada teoria do domínio do fato resulta num instrumento que contraria as normas do estado democrático de direito.
Recente decisão (27/06/2013) do TJ-SP registra:
“Lei 8.137/90 – Sonegação de tributo estadual – Sócio-proprietário da empresa – Ausência de prova de que o réu tivesse agido com intenção de lesar o fisco e que conhecesse a conduta apontada como irregular – Ônus que incumbia ao Ministério Público – Responsabilidade penal mal comprovada – Absolvição decretada – Recurso provido.” (Apelação 0067945-58.2010.8.26.0000).
A teoria do domínio do fato não pode ser aceita num país em que prevalecem a presunção da inocência e o mandamento de “in dúbio pro reo”. Em entrevista publicada no jornal Folha de S.Paulo e reproduzida nesta revista de 22/09/2013 o Prof. Ives Gandra da Silva Martins explicou porque a entende inaplicável, afirmando: “O domínio do fato é novidade absoluta no Supremo. Nunca houve essa teoria. Foi inventada, tiraram de um autor alemão, mas também na Alemanha ela não é aplicada.”
Os que sejam réus em processos relativos a crimes contra a ordem tributária (sonegação) devem proteger-se com provas adequadas que possam auxiliá-los, a começar dos documentos oficiais, notas, perícias extra-judiciais etc.
Há uma tendência natural de que o combate a tais crimes seja cada vez mais aperfeiçoado, o que é bom para o país, na medida em que, reduzindo-se a sonegação, a concorrência desleal, a corrupção e tantos outros ilícitos que nos atrapalham, seja possível uma arrecadação estável e um ambiente de trabalho melhor para todos.
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor Jurídico, 28 de outubro de 2013