Sucede que o RDC não é um salvador da pátria.

Maurício Zockun, Rafael Valim e Augusto Dal Pozzo

Anseia-se que todos os problemas nacionais sejam resolvidos em um passe de mágica. Equacionados por ideias geniais e revolucionárias, no mais das vezes decorrentes da adoção de soluções concebidas no estrangeiro – para solver-se, diga-se de passagem, de problemas dessemelhantes aos nossos.

É notório que o Brasil realizará quatro eventos esportivos internacionais: Copa das Confederações de 2013, Copa do Mundo de Futebol de 2014, Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. E para supostamente permitir a expedita e eficiente inversão dos recursos públicos necessários a realizá-los editou-se lei federal (nº 12.462, de 2011) criando um novo regime de contratação pública, inicialmente restrito a essas competições: o regime diferenciado de contratações públicas (RDC).

Sucede que o RDC não é um salvador da pátria. Primeiro porque foi inspirado em modelos jurídicos e culturais estranhos aos nossos, quais sejam: da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Federal Acquisition Regulation, dos Estados Unidos.

Aliás, de acordo com o jurista americano Steven Schooner, nos Estados Unidos realiza-se licitação porque se debita a melhor contratação ao “poder do mercado”; já entre nós realiza-se licitação por determinação republicana e por amor à igualdade de oportunidades e, claro, para também se realizar a melhor contratação.

Sem maiores embaraços qualquer jejuno em direito é capaz de perceber que a importação do modelo inspirador do RDC exigiria, afora o exame de conveniência, a necessária adaptação ao nosso ordenamento jurídico, o que, adianta-se, não ocorreu no caso. Basta ter em conta que o inconstitucional “orçamento sigiloso” contemplado no RDC foi transplantado dos mencionados regimes de contratações estrangeiros.

Segundo porque o regime de licitação e contratação pública existente – sem, portanto, as mágicas soluções concebidas no RDC – não obstaram a realização dos Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro de 2007. Além disso, é de geral conhecimento que a construção e/ou recuperação de estádios para realização da Copa do Mundo e Copa das Confederações vem se dando, grosso modo e quando decorrentes de licitação, ao amparo da Lei nº 8.666, de 1993, veiculadora das normas gerais de licitação e contratos administrativos para a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios.

Se o modelo atual já foi testado e se revelou capaz de atender demandas semelhantes – tanto que vem sendo atualmente empregado -, por que, com o perdão do coloquialismo, mudar o time que está ganhando?

A Lei nº 12.462 não poderia ter afastado a aplicação da norma geral de licitações

Não bastassem esses vícios que contraditam a razão de ser do RDC, a lei que o veiculou está enfermada por dezenas de inconstitucionalidades. Limitamo-nos a assinalar duas delas. Primeiramente, a lei do RDC não poderia ter afastado a aplicação da lei geral de licitações, como se deu na espécie. Deveras, a Constituição da República exige que as licitações e contratações públicas sejam obedientes a um modelo nacional, sem embargo de a União, os Estados e os municípios poderem ditar normas suplementares. Ao editar-se a lei do RDC criou-se, ao arrepio da ordem constitucional, um regime de licitação e contratação que convive à margem do regime geral, em invulgar desobediência à ordem jurídica.

Além disso, atribuiu-se ao administrador – e não ao legislador – a competência de definir quais obras, compras e serviços podem ser licitados por meio do RDC. Assim, nada impede que o administrador possa cambiar suas manifestações, considerando que certas obras, serviços ou bens ora são e ora não são submetidos ao RDC. É de salientar-se, aliás, a agudização dessa situação provocada pelo advento da Lei nº 12.688, deste ano, por meio da qual se estendeu o RDC às ações integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

E nem se alegue ser tarefa do administrador fixar esses parâmetros. Por um lado, porque o princípio da segurança jurídica exige a fixação de critérios objetivos para adoção do RDC, excluindo-se, por óbvio, o seguinte parâmetro objetivo: “aquilo que o administrador quiser”, como se deu na espécie.

Por outro, porque o legislador já cuidou de fixar parâmetros objetivos ao assinalar, por exemplo, que poderiam ser licitadas e contratadas pelo RDC as obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados distantes até 350 quilômetros das cidades-sede dos mundiais. Assim, não haveria razão impeditiva para fixação de outros parâmetros objetivos no âmbito do RDC.

Em direito, os fins não justificam os meios, por mais louváveis que sejam os fins e os meios. Daí a insubsistência jurídica do regime diferenciado de contratações públicas.

Maurício Zockun, Rafael Valim e Augusto Dal Pozzo são professores de Direito Administrativo da PUC-SP e membros da diretoria do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura (IBEJI).

Fonte: Valor Econômico/ contadores.cnt.br