A despeito de a discussão sobre a demora no pagamento dos precatórios seja antiga, pouco se debate acerca da possibilidade do pagamento à vista dos precatórios vinculados à sistemática de pagamento anterior à Emenda Constitucional (“EC”)nº 62/09.
Com o escopo de aflorar novas altercações, trago, de maneira sucinta, algumas ponderações quanto ao tema.
Inicialmente, é preciso registrar que os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, conforme determina oart. 100, da Constituição Federal de 1988(“CF/88″), são realizados mediante o precatório de requisição de pagamento.
O referido dispositivo constitucional, desde a promulgação daCF/88, sofreu diversas alterações, por meio dasEC’s nº 20/98,nº 30/00,nº 37/02enº 62/09.
O regramento atual que regula a execução contra as Fazendas Públicas está estabelecido noart. 100, com a redação dada pelaEC 62/09, que, dentre outras importantes modificações, (i) autorizou o “parcelamento” do pagamento dos precatórios em 15 (quinze) anos, ao incluir oart. 97, § 1º, II, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias(“ADCT”), e (ii) vedou o seqüestro de valores financeiros dos entes federados, com o acréscimo doart. 97, § 13º, no ADCT.
Tais diretrizes, em conformidade com os princípios da irretroatividade da lei e da segurança jurídica, bem como em respeito aoart. 5º, XXXVI, da CF/88, que dispõe que:
“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, são aplicadas apenas aos precatórios expedidos em momento posterior à vigência da EC 62/09.
Por conseqüência, nos casos em que o direito ao precatório se aperfeiçoou em data anterior à vigência daEC nº 62/09, deve ser aplicada a sistemática constitucional anterior. Logo, para um caso, por exemplo, cujo precatório é do ano de 2008, aplica-se a sistemática doart. 100, da CF/88, acrescida das modificações daEC nº 30/00eEC nº 37/02.
Esse, aliás, tem sido o entendimento do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (“TJ/SP”):
“Agravo regimental nº 0105003-61.2011.8.26.0000/SP: ‘(…) esta Corte tem decido que a Emenda Constitucional n. 62/09 não se aplica aos precatórios expedidos anteriormente à sua promulgação, pois a retroação nela determinada viola garantias constitucionais básicas, decorrentes de cláusulas pétreas, concedendo mais uma moratória ao Poder Público. Estes julgados, naturalmente, são do conhecimento da agravante. (…)’
No caso dos autos, o precatório foi expedido antes da entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 62/2009, a qual não pode retroagir para restringir direito anteriormente consumado, uma vez atendido o princípio da legalidade.
Portanto, tem incidência o princípio do tempus regit actum, que impede a retroação das disposições da citada emenda constitucional para atingir atos e efeitos havidos anteriormente à sua promulgação, quando então se aplicava o art. 100 da Constituição Federal e os arts. 33 e 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Isto porque, nos termos do inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal ‘a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada’.
Assim, o pedido de seqüestro deve prosseguir (…)”
(TJ/SP, Órgão Especial. Agravo Regimental n. 0105003-61.2011.8.26.0000/SP, acórdão n. 03758476, ocorrido em 1º.2.2012)
“Mandado de segurança n. 0548681-95.2010.8.26.000/SP:
“Colhe-se dos autos que o precatório de titularidade dos impetrantes, que recebeu no DEPRE o número de ordem cronológica 005/94, foi atingido pela Emenda Constitucional nº 30/2000, e após ser dividido em parcelas, não foi paga a nona parcela, vencida em 31.12.2009.
Em virtude de a Municipalidade de Santo André, deixar de efetuar o depósito do nono décimo, ingressaram os impetrantes com este pedido de seqüestro, em regular processamento, quando houve a decisão de sua extinção, em 21.09.2010, publicada em 13.10.2010, por aplicação da EC 62, em vigor desde 09.12.09.
Contudo, em que pese o respeito à decisão ora impugnada, a Emenda Constitucional 62/09 não pode incidir neste caso, uma vez que o precatório reclamado se aperfeiçoou na vigência do texto constitucional anterior àquela.
O pedido de seqüestro foi efetivado em 17.09.2010 (fls. 51).
A matéria já é conhecida, e sobre ela este Órgão Especial do Tribunal de Justiça já decidiu recentemente, em 14.07.2010, quando do exame do Mandado de Segurança nº 990.09.367782-2, mencionado também pela Douta Procuradoria de Justiça em seu parecer (fls. 186/187). O Relator daquele outro Mandado de Segurança, impetrado pela Fazenda Pública de São Paulo, foi o eminente Des. Laerte Sampaio, quando este órgão denegou a segurança para conceder à impetrante o direito ao percebimento da totalidade do crédito e a obrigação de depositá-la no prazo previsto, sem prejuízo da decretação do seqüestro e sua execução em caso de inadimplemento, acolhendo a fundamentação do voto condutor, que transcrevo no essencial, por total aplicação ao caso vertente: (…)”
(TJ/SP, Órgão Especial. Mandado de Segurança n. 0548681-95.2010.8.26.000/SP, acórdão n. 03670989, ocorrido em 24.8.2011)
Desta forma, para todos os casos anteriores à entrada em vigor daEC n. 62/09, prevalece a regra doart. 78, do ADCT, introduzido peloart. 2º, da EC nº 30/00, que autorizou o parcelamento do precatório em 10 (dez) anos.
O tema ganha importância ao considerarmos a discussão existente, na ação direita de inconstitucionalidade nº 2356, na qual figuram como partes a Confederação Nacional da Indústria (“CNI”) e o Congresso Nacional, que examina justamente a (in)constitucionalidade doart. 2º, da EC nº 30/00.
No referido processo, foi publicada, em 19.5.2011, decisão da medida liminar que determinou a suspensão da eficácia do dispositivo constitucional que autorizou o parcelamento do precatório em 10 (dez) anos. A decisão, que continua vigente até o momento, apresenta a seguinte ementa:
“(…) 6. Medida cautelar deferida para suspender a eficácia do art. 2º da Emenda Constitucional n. 30/2000, que introduziu o art. 78 no ADCT da Constituição de 1988.”
Ocorre que, em conformidade com o disposto no § 2º, doart. 11, da Lei nº 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (“STF”), “a concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário”.
Não há, no julgamento da decisão liminar da ação direita de inconstitucionalidade nº 2356, qualquer manifestação contrária à aplicação da legislação anteriormente vigente.
Isso significa que, desde 19.5.2011, a legislação aplicável aos credores de precatórios anteriores àEC nª 62/09é a redação original doart. 100, da CF/88, que prevê o pagamento à vista de seus valores, uma vez inaplicável aEC nº 62/09, que prevê o parcelamento de 15 (quinze) anos, e uma vez suspensa a eficácia daEC n. 30/00, que prevê o parcelamento em 10 (dez) anos.
Assim, diante de precatórios anteriores àEC nº 62/09, os credores fazem jus ao pagamento à vista dos valores devidos pelo Fisco, com base na redação original doart. 100, da CF/88.
Aos credores que pleitearam, até o da 1º de julho de 2012, a inclusão dos valores no orçamento do ente federativo devedor, levando em conta a redação original do § 1º, doart. 100, da CF/88, resta apenas aguardar o pagamento à vista do importe devido. Faz-se necessário ressaltar que, nos termos da redação original do § 2º, doart. 100, da CF/88, o credor do ente federativo poderá, em caso de “preterimento de seu direito de precedência”, pleitear o “sequestro da quantia necessária à satisfação do débito”.
Aos credores que ainda não pleitearam o pagamento à vista, aconselho a meditação sobre as considerações acima.
Marcel Hira Gomes de Campos, advogado em São Paulo. Graduação em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialização em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Cursando especialização em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Associado ao escritório Mariz de Oliveira e Siqueira Campos Advogados.
Fonte: FISCOSOFT