Ao defender a intrincada operação que levou o banco Santander a aproveitar o ágio da compra do Banespa para abater tributos federais, os advogados do escritório Mattos Filho, que o representaram no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, do Ministério da Fazenda, apoiaram-se em um precedente providencial. A Receita Federal cobrava R$ 4 bilhões de IRPJ e CSLL atrasados, abatidos, segundo o fisco, de maneira irregular. Um ano antes, porém, o Carf validava estratégia semelhante usada pela Vivo na privatização da telefonia fixa e móvel. O acórdão do caso Vivo, alicerce da defesa do Santander, foi disponibilizado no último mês de outubro.

A decisão é de setembro do ano passado. A 1ª Turma Ordinária da 1ª Câmara da 1ª Seção de Julgamento do Carf negou recurso do fisco, adotando unânime os votos dos conselheiros Alexandre Andrade Lima da Fonte Filho e Edeli Pereira Bessa. Eles admitiram que o ágio foi formado com base apenas na previsão de rentabilidade futura do negócio.

De acordo com a Lei 9.532/1997, o ágio em relação ao valor do patriomônio líquido das empresas estatais adquiridas nas privatizações pode ser deduzido de IRPJ e CSLL a recolher, desde que ele tenha sido calcado na expectativa de ganhos futuros, e não em ativos intangíveis, como marca e fundo de comércio — pontos de venda e carteira de clientes, por exemplo. A lei foi editada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso para viabilizar a compra de empresas estatais, na época das privatizações. Diz o texto que o contribuinte pode abater 100% do ágio em parcelas mensais de 1/60 do valor.

Decisão histórica
Foi só depois de quase 15 anos da operação que o Carf decidiu que o ágio decorrente da privatização das companhias de telefonia que originou a Vivo foi usado corretamente para abater tributos. Os conselheiros negaram Recurso de Ofício impetrado pelo fisco contra a operação e aceitaram Recurso Voluntário interposto pela empresa, defendendo seu negócio.

A discussão data de abril de 1997, quando a então Telebahia Celular (TBH), que depois se tornaria a Vivo, começou suas negociações acionárias a caminho da privatização de parte da telefonia móvel brasileira. No dia 30 de abril de 97, a TBH incorporou a Companhia Riograndense de Telefonia (CRT), com ágio calculado de R$ 472 milhões.

Um ano depois, no dia 24 de junho de 1998, a TBH comprou mais 50,12% do capital da CRT, desta vez com ágio de R$ 860 bilhões. Com essa segunda operação, a TBH passou a registrar o ágio — que chegou a R$ 1,23 bilhão, com base na rentabilidade conjunta das duas compras — em seu patrimônio.

No dia seguinte, a TBH criou a subsidiária Celular CRT, cujo capital foi integralizado pela controladora, mas não contou para o ágio. Sendo assim, no último dia de 1998, a TBH conseguiu consolidar as operações de telefonia móvel e fixa da CRT, e criou a TBH Participações, a fim de consolidar o ágio de todas as operações em uma única empresa, cujo capital ficaria distribuído entre as demais três empresas da negociação.

Mas o fisco entendeu que a operação de 1997 não apresentou fundamentação que justificasse os mais de R$ 400 milhões de ágio. A negociação de 1998 estava bem fundamentada, mas a junção das duas empresas em uma só, para depois constituir um fundo de participação, é que não estava. Com isso, a TBH acabou consolidando o ágio supostamente ilegal com o legítimo, formando um só, como se se tratasse de um único negócio. Tudo o que decorresse dessa operação, como a amortização fiscal ou as próximas trocas de ações entre fundos de participação, portanto, seria ilegal no entendimento do fisco.

Dança das cadeiras
No dia 29 de janeiro de 1999, a TBH mudou seu nome para Tele Brasil Sul, ao passo que a CRT cindiu-se e criou a CRT Participações. No momento da cisão, no entanto, de acordo com o fisco, o ágio decorrente das operações dos anos anteriores deveria ter sido dividido — o da telefonia móvel para a Celular CRT e o da fixa para a CRT Part.

Em fevereiro do mesmo ano, a Tele Brasil Sul aumentou sua fatia na TBH Part com a oferta de ações da CRT e da Celular CRT. Sendo assim, a Tele Brasil Sul abriu mão de sua participação nas companhias da CRT para ser uma das controladoras da TBH Participações. Mais uma vez, o fisco considerou que os ágios das operações de 1997 e 1998 deveriam ter sido segregados entre as companhias de telefone fixo e móvel.

Meses depois, em maio, a TBH Part mudou seu nome para TBS Participações, e separou um pedaço de sua operação para constituir a TBS Celular Part. Estavam, assim, constituídas a TBS Part e a TBS Celular Part. Houve aí um reajuste contábil de R$ 126 milhões, mas que foi considerado legítimo pelo fisco.

O que foi ilegítimo, de acordo com a Receita, foram as trocas de porcentagens de participação nos ágios. Pela negociação, os valores pagos a mais nas compras de 1997 e 1998 foram redistribuídos dentro desse complexo emaranhado de capitais, e uns ficaram com mais ágio que outros, ou seja, um “lado” do negócio levou mais vantagem.

Preparação
No dia 9 de setembro de 2000, foi criada a empresa Tula Participações Ltda, cujo capital foi integralizado pela TBS Celular Part, por meio da cessão de ações da Celular CRT. Nisso, o ágio da TBS Celular foi parar nas operações da Tula, de acordo com Relatório de Atividade Fiscal. Isso, na visão da fiscalização da Receita, foi um “ato preparatório” para a reestruturação que aconteceria no mês seguinte.

Em outubro daquele ano, a Tula foi incorporada pela Celular CRT Part. No dia 28 de outubro de 2008, uma fração do patrimônio da CRT Par foi para a Celular CRT S/A, constituída para ser uma operadora que gera resultado, e não apenas uma holding. Criou-se, então, uma única empresa, a Celular CRT.

O fisco entendeu que essa confusa negociação serviu para transferir o ágio — e sua consequente amortização de IR e CSLL — de uma holding para uma companhia geradora de resultados financeiros. Como tudo isso resultou de um ágio não fundamentado, a Receita decidiu que a operação não poderia ter acontecido.

A Vivo, que quando era uma operação conjunta da Telefónica com a Portugal Telecom, consolidou todas as operações menores, recorreu da decisão da Receita e foi ao Carf.

Melhor oferta
O conselheiro José Ricardo da Silva votou por acolher o recurso impetrado pela Vivo e rejeitar o da Receita. O fisco afirmava que as movimentações das empresas violaram o que diz a Instrução 247/1996 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) nos artigos 13 e 14.

Ambos os dispositivos, porém, segundo o relator, tratam de ágio e deságio em operações de investimento em ações entre companhias de capital aberto, o que não era o caso das empresas. Na interpretação do conselheiro, o valor a mais pago em relação ao patriomônio líquido da adquirida faz parte da competição para se obter a melhor oferta e, portanto, pode ser deduzido dos tributos a recolher.

Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.