Apesar de o processo de mudança do padrão de contabilidade brasileiro para o modelo internacional IFRS ter terminado em 2010, só agora, mais precisamente no fim do ano passado, começou a surgir uma dúvida que tem inquietado as empresas. Ela se refere ao tratamento que deve ser dado ao pagamento de dividendos isentos de Imposto de Renda aos acionistas.

Se as empresas possuem dois lucros, um societário e outro fiscal, qual deveria ser usado como base para que os dividendos possam ser distribuídos sem a incidência de tributos?

Sem fugir à tradição histórica, que vinha sendo negada nesse processo recente de mudança contábil, Receita Federal e empresas possuem entendimentos diferentes sobre o assunto.

O Fisco, de acordo com a manifestações de seus técnicos, acha que somente o lucro apurado pelas regras contábeis antigas – que é aquele que está sujeito à tributação da pessoa jurídica pode ser distribuído sem que os acionistas tenham que recolher Imposto de Renda.

Para as companhias, todo o lucro apurado pode ser distribuído de forma isenta aos investidores.

O caso se torna relevante especialmente porque estudos acadêmicos têm mostrado que, na média, o novo padrão de contabilidade aumenta o lucro das companhias em mais de 20%.

A diferença pode não ser grande o suficiente para afetar as companhias abertas que pagam uma parcela pequena do lucro na forma de dividendos, como o mínimo legal de 25%.

Mas o advogado especialista em contabilidade e tributos Edison Fernandes, do escritório Fernandes e Figueiredo, ressalta que isso afeta diretamente as controladas dessas empresas, que muitas vezes pagam 100% dos lucros para a holding aberta que as controla, além das empresas fechadas e das subsidiárias de multinacionais estrangeiras.

Mesmo antes da mudança do padrão contábil, iniciada em 2008 e concluída em 2010, o lucro societário de uma companhia já era diferente do lucro que valia para a Receita Federal, para fins de apuração de Imposto de renda e Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL).

Sem o IFRS, no entanto, todos os ajustes que justificavam a diferença entre um lucro e outro estavam previstos na legislação.

Com a adoção do novo modelo contábil, foram criados novos ajustes, que não estão mais na legislação, mas em regras infralegais, escritas pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) e referendadas por meio de deliberações da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Para resolver a questão de qual lucro deveria ser tributado, a Lei 12.941, de 2009, criou o Regime Tributário de Transição (RTT). Por esse regime, que apesar do nome ainda está em vigor, asdiferenças trazidas pela adoção do IFRS “não terão efeitos para fins de apuração do lucro real da pessoa jurídica”.

Isso garantiu a chamada “neutralidade tributária” no processo de mudança para o IFRS.

Em outras palavras, para a Receita Federal, continuam valendo as regras contábeis vigentes até 2007 para apuração do lucro, podendo ser feitas as adições e exclusões que a legislação já previa para se chegar ao lucro que é base de cálculo de IR e CSLL.

Sobre isso não há dúvidas. Mas em seminário realizado em meados de dezembro, a coordenadora de tributos sobre renda, patrimônio e operações financeiras da Secretaria da Receita Federal, Claudia Lucia Pimentel, disse que, para o Fisco, o conceito da neutralidade tributária deve ser estendido também para a distribuição de dividendos isentos.

Segundo o Valor apurou, outros técnicos do Fisco teriam manifestado o mesmo entendimento em outras ocasiões.

Em um exemplo, se uma empresa teve R$ 100 milhões de lucro societário, mas apenas R$ 70 milhões de lucro no âmbito do RTT, ela poderia distribuir dividendos isentos de IR apenas até o limite de R$ 70 milhões.

A lógica que daria embasamento para isso é que a isenção dos dividendos foi estabelecida para se evitar uma bitributação, já que a empresa já pagou IR e CSLL sobre aquele ganho antes de entregá-lo aos acionistas (veja mais nesta página).

Como esse excedente de lucro trazido pela nova regra contábil não foi tributado (por conta do RTT) haveria a incidência do imposto uma única vez, na hora do pagamento aos investidores.

O entendimento das empresas, no entanto, é distinto. Eduardo Lucano, superintendente da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca), diz que o assunto chegou à entidade no fim de 2011 e que a visão das comissões técnicas que analisaram a questão é que em nenhum caso deve haver tributação sobre o dividendo distribuído.

E ele cita uma questão prática. “Não vemos como o dividendo possa ser tributado. As normas não preveem a tributação e as empresas não veem como isso pode ser feito”, afirma, dizendo que não existe na legislação nem uma previsão de alíquota que incidiria sobre o dividendo, caso ele não fosse isento.

De acordo com Lucano, a Abrasca chegou a cogitar pedir um parecer de tributarista a respeito do assunto, mas nenhuma decisão foi tomada até agora.

O advogado Edison Fernandes ressalta ainda que o RTT fala apenas sobre a apuração do lucro. “Se fosse valer também para a distribuição do lucro, a lei teria que dizer isso”, afirma o especialista.

Para ele, caso haja um entendimento oficial da Receita Federal diferente disso, seria criado um problema para a estrutura do mercado de capitais. “Uma das vantagens de se aplicar em ações é que o dividendo é isento, apesar de haver Imposto de Renda sobre ganho de capital”, afirma.

Outra consequência da mudança seria operacional, já que as empresas teriam que controlar, dentro da conta de reserva de lucros, qual parcela não poderia ser distribuída de forma isenta.

Contexto

A isenção de Imposto de Renda sobre dividendos foi estabelecida pela Lei 9.249, de dezembro de 1995, que diz no seu artigo 10 que “os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do Imposto de Renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do Imposto de Renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no país ou no exterior”. Antes disso, a alíquota era de 15%.

Como nem se pensava em mudança de padrão contábil na época, a lei não especifica qual é esse lucro. Para Edison Fernandes, presume-se que é o lucro societário, que agora segue o padrão internacional, o IFRS

Fonte: Fenacon