Afinal, o que é uma empresa?
Luciano Benetti Timm
Escrevemos aqui nesta coluna sobre a pertinência de um novo código comercial. Mostramos que, em tese, a ideia é boa se fosse para separar bem a atividade empresarial de outros ramos do direito privado, recuperando princípios e valores próprios do direito comercial. Vejamos agora, então, se o projeto que tramita no Congresso cumpre o papel emancipatório da atividade empresarial.
O primeiro ponto a ser examinado é a concepção de constituir um código principiológico, isto é, fundado em princípios. Aqui a análise pode ser dividida em dois pontos: a) adequação teórica desses princípios; b) pertinência operacional.
No que tange ao primeiro aspecto, há que se perquirir se os princípios em que se assentam a legislação são coerentes à realidade empresarial. Com efeito, como já dissemos, o que deve ser uma empresa (juridicamente) não deve ser muito diferente do que é uma empresa concretamente.
Afinal, o que é uma empresa? É uma organização que reduz os custos de transação de mercado. Ao invés de os agentes econômicos atuarem individualmente no espaço público do mercado, eles se organizam para aumentar a eficiência de suas relações contratuais (Sztajn & Zylbersztajn, 2005). Sua regulação é necessária e deve ser feita por órgãos específicos como a CVM, o Cade e outras agências reguladoras que detêm conhecimento na atividade econômica em jogo, mas não pelo direito comercial, nem pelo Poder Judiciário.
Vejamos, então, quais os princípios propostos no Código Comercial para a atividade empresarial:
“Art. 4º São princípios gerais informadores das disposições deste Código: I – Liberdade de iniciativa; II – Liberdade de competição; e III – Função social da empresa.”
“Art. 7º A empresa cumpre sua função social ao gerar empregos, tributos e riqueza, ao contribuir para o desenvolvimento econômico, social e cultural da comunidade em que atua, de sua região ou do país, ao adotar práticas empresariais sustentáveis visando à proteção do meio ambiente e ao respeitar os direitos dos consumidores, desde que com estrita obediência às leis a que se encontra sujeita.”
Em seu texto, a principiologia da atividade empresarial não parece absolutamente distante da prática. Isto é, associar a função social da empresa à geração de riqueza, de tributos e de empregos e conectando tudo isso à livre iniciativa e à livre concorrência, que são a base de uma economia de mercado. Portanto, a linguagem do Código Comercial não nos parece equivocada.
Precisaria dizer isso numa lei? Cremos que o momento seja propício para renovar o compromisso brasileiro com um sistema capitalista, no qual a empresa é motor do desenvolvimento. Afinal, como dizia Robbins, “pior que ser explorado pelo capitalismo, é não ser explorado pelo capitalismo”.
Os benefícios compensam os riscos? Esta é a discussão que devemos travar
Agora, já no plano operacional, um código principiológico tem lá seus inconvenientes, mormente se voltados à área empresarial. De fato, os juristas já estiveram mais entusiasmados com as “teorias dos princípios”. No entanto, na experiência jurídica brasileira, alguns excessos vêm sendo cometidos por juízes e doutrinadores em nome de princípios jurídicos como “dignidade humana”, “função social”, “boa-fé” e tantos outros.
Ora, “pondera-se” (“alexyanamente”) tudo e acaba-se por afastarem-se normas legais expressas do sistema jurídico em nome destes “princípios”. Uma boa ilustração disso é um interessante catálogo principiológico (Carvalho, 2011), que dá conta de que existem mais de 200 princípios citados na jurisprudência apenas em matéria tributária! É uma verdadeira “farra principiológica” Macedo, 2006).
Nesse sentido, pode-se imaginar que os princípios gerais do Código Comercial deveriam ou poderiam nortear a (re)interpretação de todas as leis comerciais (verdadeiros microssistemas legislativos com princípios e valores próprios) que têm já consolidados uma orientação assentada nos tribunais e na doutrina. Veja-se, por exemplo, a insegurança jurídica que seria gerada com uma possível reinterpretação da Lei das Sociedades Anônimas de 1976 à luz de novos princípios instituídos por lei.
Insegurança jurídica traz maiores custos de transação aos agentes econômicos, que devem gastar mais para esclarecem o sentido das novas normas e se protegerem mais justamente de novas possíveis interpretações jurídicas.
Mas não é só isso. Possíveis novas interpretações derivadas de princípios também geram outros custos para a sociedade representados em litígios judiciais que serão formados a fim de garantir e testar novas teorias (Posner, 1977). A experiência brasileira nos mostra (a partir do que aconteceu com o Código de Defesa do Consumidor e com o Código Civil) que a jurisprudência precisa de cerca de dez anos para assentar um entendimento sobre um assunto (entre ações, recursos, etc). E quem pagará por essa conta, afinal sabemos que os litígios judiciais são subsidiados pela sociedade civil na forma de impostos, que revertem ao Poder Judiciário em sua fração do orçamento público (normalmente entre 6% a 7%).
Há que se reconhecer, de outra parte, que a linguagem do código diminui essa margem e arbitrariedade interpretativa, ao determinar: em seu artigo 8º que “nenhum princípio, expresso ou implícito, pode ser invocado para afastar a aplicação de qualquer disposição deste Código ou da lei.”
A estratégia adotada é engenhosa. Reconhecendo a “farra princiológica” que ronda a doutrina e prática jurídicas, prefere desvelá-la, estabelecendo limites a sua aplicação e construção.
Fonte: Valor Econômico